A certa altura de “Ficções”, peça teatral que chega ao Teatro Goiânia nesta sexta-feira, a atriz Vera Holtz gesticula com o pescoço levemente erguido à sua direita e, sob a luz, diz que temos incrível capacidade de inventar histórias: dinheiro, leis, religiões, idiomas, violência.
Assim surge o espetáculo, o espaço em movimento, a explosão, puff! Aparece o tempo e, dessa energia, criam-se os átomos. Dos átomos, chegam-se às moléculas, às células, aos organismos. E modificam-se os genes. Uns se adaptam, outros morrem — e viram histórias.
Ao longo dos séculos, criamos as mais belas obras artísticas, os avanços científicos mais impressionantes e, paradoxalmente, as mais apavorantes guerras. “Somos mais poderosos do que nunca, mas temos pouca ideia do que fazer com todo esse poder”, escreve o filósofo israelense Yuval Noah Harari na obra “Sapiens — Uma Breve História da Humanidade”.
“É livro que permite uma centena de reflexões a partir do momento em que nos pensamos como espécie e que, obviamente, dialoga com todo mundo”, analisa o idealizador Felipe H. Lima, que desembolsou há cinco anos grana para comprar direitos e levar a obra ao teatro.
Nela, Harari questiona ideias preconcebidas a respeito do universo. Em prosa simples (sedutora), revisita a história da humanidade numa perspectiva sociológica, mas também econômica e antropóloga. Doutor em história pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, o intelectual despertou atenção de Holtz tão logo lançara seu festejado best-seller, em 2011.
Desde então, a atriz se impressiona pelas teorias do autor israelense. “Estudava muito essa questão das crenças, esse sistema de crenças que o ser humano inventa, de crenças construtivas. Isso gera um mapeamento de sua relação com o indivíduo. Você começa a ver que toda civilização é baseada no sistema de ficções. Tudo foi criado pelo homem”, observa.
Em “Ficções”, Holtz está em grande estilo. Existe charme, a força da energia cênica na interpretação da atriz, a entonação da voz, os passos seguros. Ficamos hipnotizados e, desse modo, entendemos que o teatro é ferramenta para transformar o mundo. Essas reflexões nos passam pela cabeça durante uma hora e meia, tempo que dura o elogiado monólogo.
Para Holtz, é necessário que acreditemos em alguma coisa. “Tudo foi criado pelo homem. Fazemos novos acordos, novas ficções e novas crenças”, constata a artista, que carrega em seu currículo espetáculos com os diretores Gerald Thomas e Antônio Abujamra. “Abujamra funda uma identidade, uma persona artística. Abujamra liberta o intérprete.”
No palco, durante “Ficções”, Holtz interpreta personagens idealizados por Harari e, de repente, vive criações de Rodrigo Portella, encenador que criou o jogo teatral no qual somos lembrados sobre as ficções inventadas por nós. “Toda a civilização é baseada nesse sistema.”
Desafio
Quando lhe chamaram para escrever e dirigir “Ficções”, Portella achou que usaria trechos do livro para criar o espetáculo. Ao ler a obra, todavia, percebeu que isso não seria possível. Para funcionar melhor, pensou, era prudente partir das premissas aventadas por Harari.
Portella explica que queria fazer uma espatifada. Desejava ir por um caminho onde o espectador fosse convidado e, sobretudo, provocado a construir a peça. “É uma espécie de jam session. É uma performance em construção. Vera e Federico Puppi brincam com tudo, com os cenários. Tem uma coisa meio in progress”, detalha Portella, que já escreveu 12 espetáculos.
Aos 71 anos, Holtz não se vê paralisada pelo etarismo. Pelo contrário, a atriz afirma que existem milhões de janelas, portas e fendas. “Eu acho que as pessoas ficam catalogando a gente. É uma etiqueta. Não sei se é pelo fato de viver num mundo de criação, num mundo de ficção, mas eu não entendo essa etiqueta. Não que eu não sinta a questão do etarismo.”
Há décadas nos palcos, a atriz atuou em espetáculo emblemático do teatro brasileiro. “Rasga Coração”, texto escrito por Oduvaldo Vianna Filho, foi o primeiro liberado pela censura, em 1979. Conforme o diretor Zé Renato, Vianinha terminou de escrevê-lo já doente. “Foi um período de muito estudo da época em que a gente estava vivendo”, recorda-se.
Ativa no Instagram (tem 1,2 milhão de seguidores), Holtz costuma viralizar com fotos performáticas, de beleza estética e relevância semiótica. Induz-nos por meio desses registros a reflexões acerca de assuntos contemporâneos, como feminismo e consciência ecológica.
Na autobiografia “O Gosto da Vera”, a atriz escreve que seu ofício necessita de certa dose de loucura para funcionar. “A gente tem que estar com um pé na loucura, e a gente tem que estar com o pezinho também na sabedoria. E tem que ter um pouco de realidade”, diz. “Ficções” é a chance de assistir uma fabulosa atriz no auge de sua força cênica.
FICÇÕES
Teatro Goiânia
Rua 23, 252, St. Central
Sexta, sábado e domingo
Às 20h30 e 18h
A partir de R$ 42
Classificação: 12 anos