Adivinha quem tá de volta, doutor, pra explorar tua vergonha: Planet Hemp. Com arranjos inéditos, riffs poderosos e letras afrontosas, os maconheiros mais famosos do Brasil lançam no streaming um manifesto ao vivo, um testemunho anti-proibicionista e libertário.
BNegão afirma que há algo marcante em ver público jovem cantando músicas do Planet com empolgação. “Esse disco ao vivo é o registro dessa energia, da nossa conexão com o público e de uma história que não se perdeu no tempo, ao contrário: apenas se fortaleceu. São 30 anos, mas a pressão sonora é a mesma – o Planet Hemp nunca foi só música ”, conta.
Desde a última década, BNegão, Marcelo D2, Formigão, o baterista Pedro Garcia e o guitarrista Nobru Pederneiras construíram bases para o bem-recebido “Jardineiros” (2022), cujo discurso engajado vocifera contra status quo, pastores e milicianos. A maconha, claro, ainda se faz assunto recorrente, sobretudo defesa a medicinal dessa planta proibida.
Em termos de sonoridade, o rock do Planet preserva referências a Rage Against The Machine, banda que fundiu rap ao metal e traz letra de viés progressista. Ecoa, por vezes, o groove funkeado do Miami Bass, subgênero do hip hop popular entre anos 1980 e 1990. No entanto, o grupo carioca atinge plenitude ao demonstrar pulso roqueiro de verniz punk.
Assim, queimando tudo até a última ponta e mantendo o respeito, o Planet Hemp colocou sete mil pessoas no Espaço Unimed, em São Paulo, onde gravara “Baseado em Fatos Reais: 30 Anos de Fumaça”. O show, captado em 11 de julho último, sintetizou três décadas de luta pela maconha, em uma cenografia que emula estufas canábicas de cultivo indoor.
À esquerda, com seus grooves libertários, o baixista Formigão pilota os graves. Já à direita, como se combatesse esse campo político com seu timbre pesado, o guitarrista Nobru impulsionava o som da banda, livrando-nos de todo autoritarismo. É o grito elétrico da liberdade, o dig dig dig (hempa), a distopia, o fim do fim, a ex-quadrilha da fumaça.
“Avisa lá, avisa lá que a ex-quadrilha da fumaça está de volta pro terror dos fascistinhas de m…”, anuncia D2, em certa altura do clássico “Legalize Já”, lançado no ruidoso “Usuário”, de 1995. O palco, ladeado por luzes verdes, recebe artistas que reenergizaram a música brasileira. Dessa vez, ao vivaço, Planet ressurge — e recicla — sua própria lenda.
Para D2, “Baseado em Fatos Reais: 30 Anos de Fumaça” ultrapassa limites da celebração. “É a reafirmação de tudo que sempre defendemos desde o começo. Cada faixa e participação trazem um pedaço dessa história, e ouvir isso ao vivo, com a energia do público, é lembrar o motivo pelo qual começamos. São 30 anos e a chama não se apagou, nem se apagará”, diz.
“Baseado em Fatos Reais: 30 Anos de Fumaça”, de cara, manda papo-reto. “Essa bendita planta/ o plano é baseado/ no medo/ e na ignorância/ alheia”, ataca a banda, enquanto manda ver, em seguida, medley “Ex-Quadrilha da Fumaça/ Fazendo Sua Cabeça”. A nova versão dessas músicas explode num refrão metálico, com seções de sopro e de percussão.
Cada faixa e participação trazem um pedaço dessa história, e ouvir isso ao vivo, com a energia do público, é lembrar o motivo pelo qual começamos. São 30 anos e a chama não se apagou” Marcelo D2, vocalista
Mesmo que não seja maconheiro (como ressaltou D2 em coletiva antes do show), o rapper Criolo quase é integrante do Planet. Ele celebra “a força da canção” contra o retrocesso em “Distopia”. Logo depois, “Taca Fogo RMX” traz o trapper Major RD e, em “Fim do Fim”, o músico Rodrigo de Lima, da banda Dead Fish, reafirma ligação do Planet Hemp com punk.
Ativismo
“Legalize Já”, por sua vez, é clássico irrefutável. A inclusão dessa canção no disco ao vivo reforça a ideia de celebração e luta. Em Stab”, DJ Zegon se junta à banda e, em “Nunca Tenha Medo RMX”, os convidados são Seu Jorge e Emicida. Enquanto Jorge vocaliza o refrão com a voz grave, Emicida solta rimas inéditas — em homenagem aos mestres do Rio.
Inclusive, Jorge lembra dos tempos em que tocou percussão na cozinha rítmica do Planet, durante a turnê do disco “O Sagaz Homem Fumaça”, lançado em 2000. Ainda mostra seus dotes instrumentais na flauta transversa, em groove que faz a quadrilha da fumaça decolar.
Camarada de longa data, o cantor Black Alien volta a dividir palco com Planet para quatro faixas: “Queimando Tudo”, “Deisdazseis”, “Zerovinteum” e “Contexto”. Em “Quem Tem Seda”, o carismático BNegão convoca público a acender seus isqueiros. “A gente vê a quantidade de maconheiro presente em quem não vem de celular”, constata rapper.
Mantendo-se intenso e pesado, “Baseado em Fatos Reais: 30 Anos de Fumaça” reforça ativismo pró-cannabis com impactante “Puxa Fumo”. O hip hop rouba cena em “Onda Forte”, bateu forte pacas, e aí a banda celebra resistência contra “os idiotas e toda a sua ganância”. Com BaianaSystem, rola dueto em “Dig Dig Dig (Hempa) / Duas Cidades”.
A roda punk se forma na violentíssima “Hip Hop Rio”, que tem provocado catarse sem igual em shows, com um pequeno palco erguido entre a plateia, os dois vocalistas ali, e som estratosférico na caixa. “Salve Kalunga” traz o líder do Suicidal Tendencies, “Mike Muir”, e As Mercenárias se juntam a D2 e BNegão para a fundamental “Me Perco Nesse Tempo”.
Parceira do Planet desde os tempos de Inkoma, Pitty reedita parceria apresentada no último Rock in Rio com “Admirável Chip Novo” — antes disso, todavia, “A Culpa é de Quem?”. Já “Samba Makossa” ressoa homenagem-manifesto a Chico Science e Nação Zumbi. “Baseado em Fatos Reais: 30 Anos de Fumaça” termina com “Mantenha o Respeito”.