O trompete chega aos ouvidos. Como numa simbiose entre dois amantes, o baixo atiça a vontade de balançarmos. Marisa Monte centraliza nossas atenções: “A lua e eu/ A lua e eu/ Mais um ano se passou/ E nem sequer ouvi falar seu nome.” Grande Cassiano, mestre do soul brasileiro, acentuação paraibana. Uma música, realmente, destinada aos corações dilacerados. Memórias caminham pela estrada, quando olho em volta e só vejo pegadas, mas não são as suas. Esse tal Genival Cassiano chefiava mesmo o ministério da cornitude.
“Portas ao Vivo” precisa ser elogiado. Começa melancólico, dolorosamente romântico, e então você se prepara para chorar. Há um metal delicado soando atrás de nós e uma linha de guitarra sussurra o barulho das folhas mortas, ao estilo daquilo que pede a voz lírica dos versos, uma voz lírica que se olha no espelho, percebe-se velha e acabada. Marisa, uau!, eu me ajoelho. Em 1 minuto e 59 segundos, o sotaque soul de Cassiano pega o boné para assistir ao vozeirão da cantora. Não é fácil: o canto dela carrega toneladas de sentimento.
Aos 56 anos, a carioca Marisa de Azevedo Monte preserva a versatilidade vocal. A balada “A Lua e Eu” apenas reforça algo que os fãs em si já sabem, pelo menos, desde o disco “Mais”, com o qual fez sua estreia fonográfica, em 1991. Nos primeiros segundos, naquele esquema trompete, baixo, guitarra e voz, ela muda o tom, como se ligasse regiões de canto onde é impossível chegar, digamos, sem condução apropriada. Marisa cantou a parceria entre o paraibano Cassiano e o carioca Paulo Zdanowski numa passagem de som, em João Pessoa.
Flui bem, sem dúvida. Ela sabe o que faz. Das sete músicas escolhidas para “Portas Raras”, duas foram feitas por Marisa - “Pernambucobucolismo” e “Seo Zé”. Essa última, aliás, jamais teve gravação oficial. Só é possível encontrar registro dela com participação de Marisa Monte e Carlinhos Brown no doc “Barulhinho Bom”, de 1996. Mas no disco, para deleite dos fãs, aparece com arranjo suingado: percussão corre ao lado da bateria, baixo supimpa costura a música e a sublime voz marisiana soa no fone repousado em nossos ouvidos.
A música explode sua dinamite latina. Quando o trio de metais composto por Antonio Neves (trombone e arranjos), Eduardo Santanna (trompete e flhugelhorn) e Oswaldo Lessa (saxofone e flauta) posa ao centro dessa terra de suingue, chegamos a balbuciar adocicadas blasfêmias. Ora, era o tipo de som que queríamos ter apreciado na discografia da cantora há 10 ou 15 anos. “Vamos chamar Brás Cubas pra dançar quadrilha/ Pra subir pra Cuba com toda a família”, canta a diva, na música composta por ela, Brown e Nando Reis, em 1996.
Não bastasse a cachoeira de emoções latinas despejadas, Marisa se junta ao sanfoneiro cearense Waldonys e, na introdução, o instrumentista toma a dianteira. Rola as notas dele, tenor deslumbrante dela, brasilidade comovente de ambos. Composta por Gilberto Gil e Dominguinhos, a letra passeia pelo sertão: “Por ser lá de lá/ Do sertão, lá do cerrado/ Lá do interior do mato/ Da caatinga, do roçado/ Eu quase não saio”. O público, sensível às tradições regionais de nossa gente, aplaude os intérpretes, agora num dueto já mais óbvio.
Olhos fechados
Celestial, meus amores! Enquanto sopra os últimos acordes de “Lamento Sertanejo”, já com os olhos fechados, não espero mais nada. Se fosse um EP com três faixas, não um disco de sete preciosidades da intérprete Marisa Monte, me daria por satisfeito. Só que, sendo Marisa excelente, Waldonys pega a sanfona para fazê-la gemer na eterna “A Vida do Viajante”, composição assinada pelos músicos Luiz Gonzaga e Hervé Cordovil, no ano de 1953.
Outra canção de Marisa aguardada pelos fãs é “Pernambucobucolismo”, parceria da cantora com o compositor Rodrigo Campello, em 2006. Ao contrário de “Seo Zé”, a 4° faixa de “Portas Raras” está no repertório do DVD “Infinito ao Meu Redor”, de 2008. O baixo de Dadi Carvalho, como em todo o disco, prepara a cama na qual se deitará a guitarra de Chico Brown, cuja sequência de acordes melódicos acolhe o timbre encorpado do canto marisiano: “Eu vou fazer/ Um movimento, amor/ Uma canção para inventar o nosso amor.”
Tal qual na versão de Caetano Veloso, “Leãozinho” espalha ternura da primeira nota ao último acorde na passagem de “Portas” por Lisboa. Marisa divide o microfone com o cantor uruguaio Jorge Drexler, fã da música brasileira. A fossa lupiciniana dá as caras na cruciante “Felicidade”, uma das belezas encontradas na obra de Lupicínio Rodrigues, interpretada por Marisa durante apresentação na cidade de Porto Alegre. O vocal suave se aclimatou bem à poesia lapidada pelo sambista gaúcho, homem que entendia do desassossego amoroso.
Com sete faixas, Marisa Monte prepara o terreno para o lançamento, mês que vem, do disco que registra o aclamado show “Portas”, que passou por Goiânia em setembro último, no Shopping Flamboyant. O álbum sai semanas após o single “Doce Vampiro”, homenagem à cantora Rita Lee. Resta-nos aumentar o volume e se deliciar com o repertório selecionado pela diva carioca. Marisa, sua voz ainda é gostosa de se ouvir. “Portas Raras” impressiona.
Veja letra da música ‘Seo Zé’
O Brasil não é só verde anil e amarelo
O Brasil também é cor-de-rosa e carvão
Patrimônio de Antônio, anônimo nômade
Homem que rompe, Adão com facão
Seo Zé tá pensando em boi
Bananeira sangrou
Mais um pro baião de dois
Lampião findou cabôco
O Brasil não é só verde anil e amarelo
O Brasil também é cor-de-rosa e carvão
Patrimônio de Antônio, anônimo nômade
Homem que rompe, Adão com facão
Seo Zé tá pensando em boi
Bananeira sangrou
Mais um pro baião de dois
Lampião findou cabôco
Vamos chamar Brás Cubas pra dançar quadrilha
Pra subir pra Cuba com toda família
Se encontrarmos Judas celebrando budas
Perfilamos mulas pra abalar Belém
Seo Zé tá tangendo boi
E a porteira serrou
Quem foi nunca mais se foi
E a roseira flororô
Seo Zé tá pensando em boi
Autores: Carlinhos Brown, Nando Reis e Marisa Monte
Ficha técnica:
Dadi - baixo
Davi Moraes - guitarras
Pupillo - bateria
Pretinho da Serrinha – percussão, cavaquinho e voz
Chico Brown - teclado, violão e guitarra
Antonio Neves - trombone e arranjos de metais
Eduardo Santanna - trompete e flugelhorn
Oswaldo Lessa - sax e flauta