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Madonna ressignificou a noção de santidade com postura provocante

Artista habita imaginário coletivo desde quando despontou na música nos anos 1980 e quebrou paradigmas com estilo libertário

Madonna, diva pop - Foto: Steven Klein/ Divulgação Madonna, diva pop - Foto: Steven Klein/ Divulgação

Madonna escandalizou os puritanos. Jamais se deixou encaretar. Por vezes, driblou o assédio de empresários que desejavam transar consigo a todo custo. Dona de si antes de qualquer suspeita, infestou nosso imaginário com energia sexual condensada numa extensa discografia. Escutá-la é – ainda hoje – erotizante o suficiente para nos despertar ao gozo.

Parte dos versos escritos pela diva pop compõe o passo a passo até chegarmos ao clímax materializado na lenta explosão de um delicioso orgasmo. Daqueles que nos fazem revirar os olhos, sabe? Tesão chocante. Para os conservadores, é perturbador. Imagine se os homens de bem tolerariam uma loira gata lhes dizendo que escolhia quem iria levar para a cama.

Fica-se em êxtase assim que a voz de Madonna entra na primeira estrofe, na sexualizante “Like a Prayer”, de 89. A temperatura aumenta quando o eu-lírico confessa uma safadeza envolvendo elementos religiosos. “Quando você chama meu nome/ é como uma pequena oração/ estou de joelhos/ quero te levar até lá”, vocaliza, enquanto beija os pés de um Jesus negro diante do racismo americano – numa união, no mínimo, provocativa entre sexo e fé.

Os reacionários, meu Deus, se sentem ultrajados. Também, pudera: Madonna os afrontou. Persona non grata pelo catolicismo, caiu-lhe a ficha de que era preciso dar as caras no clipe cantando entre cruzes em chamas – era uma referência (meio óbvia até) à organização racista Ku Klux Klan, que costumava se valer do símbolo religioso. O papa João Paulo II afirmou que a turnê “Blond Ambition World Tour” era “um dos sonhos mais satânicos da história”.

Como se ambicionasse um orgasmo para entrar na eternidade, a cantora abre “Erotica”, disco lançado em 92, com um balanço funkeado. A batida sensualíssima oferece uma pulsão corporal cobiçada pelos amantes nas pistas de dança, nos quartos de motéis ou nos aposentos de casa. Gemidos, quase sussurros, sibilam “erotica/ romance/ erotica”.

Jazz egressa ao pop. Sentimentalmente educado. Ou nem tão educado assim. Arion Berger, no calor do momento, quando o disco chegou às lojas, escreveu na “Rolling Stone” que demorara dez anos para a estrela pop gravar o disco que todos a acusaram de fazer. “Frio, deliberado, com postura implacável. ‘Erotica’ é um álbum pós-AIDS sobre romance – não evoca tanto o sexo, mas fornece uma abstração fetichista dele”, conceitua o crítico.

Ela (Madonna) não é apenas um ícone do entretenimento – é uma artista que impactou a história sociocultural em nível global Mary Gabriel, biógrafa

Até chegar ao estrelato, que começou a alcançar ao lançar o disco “Madonna” (1983), passou por poucas e boas. Aos 19 anos, desceu do avião no Aeroporto Internacional John F. Kennedy, em Nova York, com uma quantia irrisória na carteira – “uma idiota com 35 dólares”, conforme declarou num show realizado na metrópole estadunidense em janeiro deste ano.

Perrengue

Na cidade em que germinara nos anos 70 o punk-rock dos Ramones e a disco music de Gloria Gaynor, Madonna precisou roubar para sobreviver. Alimentando-se mal, revirou lixo atrás de comida. Também dormiu em lugares sórdidos infestados de baratas. Uns e outros, apesar das dificuldades, lhe ajudaram com um teto. Nessa época, de preocupação financeira e sonho de ser uma estrela, tocou bateria na banda de rock The Breakfast Club.

Nascida em agosto de 1958, no Michigan, Estados Unidos, enlouqueceu em 1974. Primeiro, descobriu os encantos do sexo. Depois, iniciou-se a sério nas técnicas do balé e, por fim, assistiu a um show do cantor inglês David Bowie – considerado então o maior popstar do planeta. Das três descobertas, talvez a perda da virgindade tenha sido a menos importante, mas era atividade a que todo jovem prestes a sair da adolescência deveria se dedicar.


		Madonna ressignificou a noção de santidade com postura provocante
Madonna posa para fotografia de Steven Meisel, que faz parte do livro 'Sex', de 1992 - Foto: Divulgação.


Mary Gabriel, autoridade no mundo quando o assunto é Madonna, afirma que as outras duas, as aulas de dança e a música de Bowie, mudaram “totalmente” a vida da jovem predestinada ao brilho dos holofotes. Essa observação está no catatau “Uma Vida Rebelde” (R$ 119,90), obra de 854 páginas que acaba de chegar às livrarias brasileiras na esteira do show gratuito dado neste sábado, 4, pela diva nas areias de Copacabana, no Rio de Janeiro.

“Ela (Madonna) não é apenas um ícone do entretenimento – é uma artista que impactou a história sociocultural em nível global”, diz a biógrafa, no livro recém-lançado. Para a artista, o processo criativo é algo a ser valorizado. Compõe a música, projeta a turnê e sugere ideias tanto para o ensaio fotográfico quanto para o clipe – duas das iconoclastias da diva pop responsáveis por lhe tornarem uma celebridade capaz de ressignificar a noção de santidade.

Em crônica publicada neste Diário da Manhã, o jornalista Rimene Amaral conta que uma senhora, do interior goiano, tinha fixada à parede imagem improvável de Madonna, em página inteira, retirada de uma revista. E não era qualquer fotografia, não. Era simplesmente um frame do tal clipe afrontoso, que fez a artista ser excomungada pelo papa: “Like a Player”. Constância acreditava que era sua protetora, definindo-a como “a mãe de Deus”.

Não bastasse tamanho efeito no inconsciente, beijava-lhe ainda a ponta dos dedos. “Eu quis esclarecer o equívoco, mas achei melhor deixar que a fé permanecesse. Aquela imagem representava para dona Constância tudo de bom que havia acontecido nesse tempo e, como ela mesma dizia, era a fortaleza para levar a vida até o fim. O que vale é a fé!”, observa Rimene, que fez uma oração com ela para Madonna, se despediu e voltou para casa.

Das mulheres na indústria esperava-se sensualidade, mas não sexualidade, com o objetivo de excitar uma plateia criada para observá-las, mas não ouvi-las Mary Gabriel, biógrafa

Antes da fama, na virada dos anos 70 para os 80, Madonna namorou numa sinagoga que tinha estúdio aos fundos. Ali, posou para Dan Gilroy, boy da ocasião. Em troca, o rapaz lhe ensinou a tocar guitarra, bateria e teclado – habilidades postas a serviço da banda punk Breakfast Club. A intimidade dos dois era calma, conforme narra Gabriel em “Uma Vida Rebelde”. Ambos ficavam na cama pela manhã e conversavam. Às vezes, saíam para correr.

Aos poucos, Madonna foi conhecendo gente como o fotógrafo Marcus Leatherdale, que lhe apresentou o artista Andy Warhol. Morou em Paris para tentar carreira como dançarina, mas logo depois percebeu que a vida francesa lhe soava desinteressante. Não queria ser uma madame entornando vinho na Europa. Queria, isto sim, uma carreira de sucesso na música.

De volta a Nova York, atenta ao punk e à new wave, chegou a se apresentar no palco do CBGB, no qual tocaram Blondie e Talking Heads. Gabriel lembra que a indústria fonográfica existia para celebrar o amor heterossexual, estrutura a que Madonna se opôs tão logo entrou no estúdio para gravar o primeiro disco, cujas canções “Burning Up”, “Physical Attraction” e “Borderline” foram compostas no apartamento de Jean-Michael Basquiat, em 82.

“Das mulheres na indústria esperava-se sensualidade, mas não sexualidade, com o objetivo de excitar uma plateia criada para observá-las, mas não ouvi-las”. Madonna ousou quebrar essa lógica. Daí partirá o show dela transmitido pela TV Globo, Multishow e Globoplay – com sinal aberto para não-assinantes. Os ecos da diva pop se espalham pelo mundo. São reverberados na música de Fernanda Abreu e Marina Lima. Só gente boa.

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