Um slide cantado antecede os versos da música “O Retorno de Saturno”, hit do disco homônimo, lançado em 2008. Uau, cara! O que é isso aqui? A banda Detonautas sabe muito bem o que faz: letras sentimentais, baixo costurando o compasso de bateria, arranjos delicados. Ouviu, balançou, esse é o lance. Ou seja, é uma receita infalível - basta a música entrar duas ou três vezes nos tímpanos pra já levar o leitor-ouvinte a mexer as pernas.
Bons sons costumam grudar. Um rock simples, então, nem se fala. Em duas décadas (isso se você contabilizar ano em que saiu o primeiro disco, pois a banda se formou, na verdade, em 97), o Detonautas fez toda uma geração crescer cantando seus refrões e tocando em guitarras distorcidas seus riffs barulhentos. Se pensar na saúde do rock nacional durante os anos 90, quando Planet Hemp, Nação Zumbi e Charlie Brown tentaram nadar contra a maré do axé, o grupo mostrou que power chords e a força da poesia ainda eram capazes de emocionar.
É difícil passar incólume pelo disco “Detonautas 20 anos - Acústico”, já disponível nas plataformas de streaming. Sucessos geracionais, como “Outro Lugar”, “Olhos Certos”, “Quando o Sol se For”, “O Retorno de Saturno”, fazem o repertório valer a pena, mas a surpresa mesmo se dá na faixa “Aposta”. Aliás, foi a escolhida pela banda para ser a canção de trabalho. Em termos melódicos, lembra os melhores momentos do grupo, com um refrão sobre nossas ambições e uma estrutura harmônica que segue a cartilha do sucesso.
Do início ao fim, a canção aposta no amor, na valorização do que nos faz bem e, por extensão, do que nos alimenta a alma. O primeiro volume do projeto conta ainda com as canções “O Dia Que Não Terminou”, “Por Onde Você Anda?” e “Lógica”. Já o segundo EP trouxe as faixas “Só Uma Canção”, releitura do grupo Som da Rua, “O Retorno de Saturno”, sucesso de 2008 da banda e excelente escolha para abrir o repertório - essa é, sem dúvida, um ponto alto. “Um Cara de Sorte”, de 2012, e “Vamos Viver”, de 2014, marcam o setlist.
Tico Santa Cruz diz ao Diário da Manhã que tocar essas músicas em formato desplugado é natural. “A grande maioria delas nasceram no violão. Nosso processo para o disco foi o seguinte: pegamos essas músicas, tocamos elas em voz e violão. Se a música funciona assim, você pode ter certeza que qualquer arranjo que entrar ali, respeitando o bom senso e bom gosto, é claro, vai emocionar as pessoas, porque a gênese da música está ali”, revela.
Gravado no teatro Riachuelo, no Rio de Janeiro, o disco “Detonautas Acústico - 20 Anos” abrange toda a história da banda em 19 faixas. O registro tem as participações especiais de Badauí (CPM22), Lucas Silveira (Fresno) e Di Ferrero (Nx Zero). Ficou assim: o CPM divide o microfone com Tico em “Só por Hoje”. Depois, os dois fazem dueto com Lucas Silveira para rememorar “Quando o Sol se For”. E os três, por fim, interpretam “Outro Lugar”. A produção foi comandada por Marcelo Sussekind e a direção, por Julio Loureiro.
Muitos artistas de nossa música gravaram discos acústicos. Também, pudera: sua receita é apetitosa. Importado da MTV norte-americana (Nirvana criou um dos melhores álbuns unplugged já feitos, com direito a cover de David Bowie), dois artistas foram pioneiros no Brasil: Barão Vermelho e Marcelo Nova. Gilberto Gil, Gal Costa, Paralamas e Ira! escolheram desligar seus instrumentos. Exceto Barão e Marcelo, que participaram do projeto piloto, no início dos anos 90, o formato alavancou as carreiras, com alta vendagem de discos, hits nas rádios e público renovado - como ocorreu nos anos 2000 com o Kid Abelha, por exemplo.
História
A marca das duas décadas é celebrada conforme o lançamento do primeiro álbum nacional do Detonautas, pela WEA, que estreou em 30 de setembro de 2002. Quem produziu esse disco foi o guitarrista Fernando Magalhães, do Barão Vermelho, uma das bandas mais importantes do rock brasileiro. O hit “Outro Lugar” e a matadora “Quando o Sol se For” estão nessa obra. De lá pra cá, o grupo acumulou sucessos e tocou pelo mundo inteiro. Até chegou a abrir nos anos 2000 para os californianos do Red Hot Chili Peppers.
Em 2010, Detonautas lançou acústico no qual os números, ainda hoje, impressionam: músicas com mais de 150 milhões de visualizações somadas no YouTube. Canções eternas que embalaram a vida das pessoas e impulsionam momentos, sejam felizes ou tristes. Após esse lançamento, a banda passou 10 anos independente. Mas não deixou de criar: “A Saga Continua” e “Álbum VI” são desse período. E os sucessos “Um Cara De Sorte” e “Por Onde Você Anda” também. Numa das passagens mais marcantes da carreira, na faixa “Você Vai Lembrar De Mim”, a sambista Alcione se juntou à banda para um bonito boleto.
A banda arquitetou, além de tudo, uma carreira recheada de singles, como “Ilumina O Mundo”, que alerta para questão da prevenção ao suicídio e faz um trabalho junto ao CVV. Depois, de volta à Sony Music, lançaram mais dois discos: “Álbum Laranja”, com crônicas políticas, e “Esperança”. São trabalhos que revelam como o rock, se entendido pelo viés de linguagem que está em sintonia com seu tempo, pode ser um importante instrumento para reportar o contexto sociopolítico. Isso os Detonautas fazem - e muito bem.
“O rock sempre foi visto pelas gerações anteriores a ele com desdém imputando características como coisa de vagabundo, de maconheiro, de desajustado, de pessoas que não estão ajustadas com a sociedade, de marginais, etc. Me estranha um gênero que durante tantos anos foi colocado à margem, ou seja, as pessoas foram oprimidas de alguma forma por conservadores da época anterior a que o rock se tornou popular e depois se reproduzir esse mesmo comportamento. Isso é que me estranha”, analisa Tico.
Letrista que bebe na fonte da literatura, admira a poesia de Renato Russo e a ironia de Cazuza, Tico Santa Cruz vê com entusiasmo o discurso do rap e também do trap, cujo maior expoente no cenário brasileiro é Matuê. Tico diz que, em 2024, ideia é rodar Brasil com shows no formato acústico. Goiânia está no itinerário. “Oscar Niemeyer é ótimo”, elogia.