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Como Luiz Melodia se transformou em trovador urbano da sociedade contemporânea

Dono de obra arrebatadora — tanto em termos musicais quanto poéticos —, artista começa a ser redescoberto pelas novas gerações sete anos após sua morte

Luiz Melodia, cantor e compositor - Foto: Mario Luiz Thompson/Divulgação Luiz Melodia, cantor e compositor - Foto: Mario Luiz Thompson/Divulgação

Coloco a agulha da vitrola na faixa: Luiz Melodia. Fecho os olhos. O soul perolizado “Vale Quando Pesa” me desperta lembranças. “Aquela madrugada deu em nada, deu em muito, deu em sol/ aquele seu desejo me deu medo/ me deu força, meu deu mal”, balbucio, alegre.

Melodia, o poeta do morro, surge em vinil, passa pelo CD e sobrevive ao streaming, a nuvem virtual desses tempos de conectividade. Enquanto o negro gato diz que é “forte feito cobra coral”, me embrenho numa epifania melodiana: ser marginal é viver a liberdade.

Quando câncer matou Melodia em 4 de agosto de 2017, aos 66 anos, sabíamos que o batuque do Estácio havia adquirido poderoso sotaque bluesy. Em grande medida, como constato agora que escrevo ouvindo o elepê “Pérola Negra”, isso se dá pelo fato de o artista jamais ter aceitado pecha de sambista, utilizada por empresários fonográficos para lhe aprisionar em rótulos castradores, embora fosse bamba do samba-choro, samba-soul e samba-rock.

Daí nos reconforta saber que Melodia tem sido descoberto pelos jovens. Há estímulo para tanto, claro. Sob direção de Alessandra Dorgan (sem estreia em Goiânia), o doc “Luiz Melodia - No Coração do Brasil” elucida diferença entre ser maldito e rebelde. A produção desvenda motivos pelos quais a prosódia melodiana ocupa lugar nobre na canção popular.

A Sony Music reforça tal característica com o registro “Estácio Ao Vivo”. O áudio foi captado em apresentação realizada no Teatro Rival, em 17 de novembro de 1998, no Rio de Janeiro. São 16 canções executadas por banda coesa, com Renato Piau (violão, guitarra e vocais), Jorjão Barreto (teclados), Élcio Cafro (bateria) e Aluízio Veras (contrabaixo).

Outro lançamento importante à memória de Melodia é releitura pelo cantor Dude São Thiago da canção “Magrelinha”, gravada no lendário disco “Pérola Negra”, de 1973. A gravação, disponível no streaming, inclui ainda texto originado na pena de Dude, que discute questões sociais urgentes. Adiciona, portanto, mais nuances interpretativas à música.

“Melodia quebra a cisão morro-asfalto, fazendo música de morro no asfalto e vice-versa. Nunca se submeteu a ser definido como artista de um único gênero, nem dentro do mundo musical, nem entre os diferentes campos artísticos em que atuava. Com essa liberdade identitária que ele provocava, eu me identifico muito – por mais paradoxal que isso possa ser”, depõe São Thiago, que também é psicanalista, dramaturgo, médico e diretor teatral.

Nas letras, o carioca apresenta imagens pessoais, como “beijos demorados, afirmados, não podemos mentir”, de “Vale Quanto Pesa”, e “tente entender tudo mais sobre o sexo”, da canção “Pérola Negra”. Ambas, lindas, revelam poética especialíssima: Melodia é cronista urbano, poeta da cidade. Como nos conta na canção “Onde o Sol Bate e se Firma”, do disco “Mico de Circo”, lançado em 1978, via vitrines, via boutiques, só não via quem não queria.

Melodia quebra a cisão morro-asfalto, fazendo música de morro no asfalto e vice-versa. Nunca se submeteu a ser definido como artista de um único gênero, nem dentro do mundo musical, nem entre os diferentes campos artísticos em que atuava Luiz Melodia, cantor e compositor

“Pérola Negra” versa sobre amor e dúvida, com sentimentos conflitantes — “baby, te amo, nem sei se te amo” — ou dramáticos — “arranje algum sangue/ escreva num pano”. Há inquietude em não saber mais o que é amor. A liberdade sexual estava em pauta nos anos 70, lançando novo olhar sobre relação entre amor e sexo, entre afeto e romantismo.

Tal repertório lírico, unido à musicalidade simbiótica (samba, rock, blues, soul e forró), encantou a geleia geral da zona sul. Artista de vocação contracultural, Waly Salomão ficou enlouquecido. Resolveu, então, subir o morro para conhecer esse jovem músico que seduzira a intelectualidade carioca. Salomão o apresentou aos tropicalistas, incluindo Torquato Neto, que se despirocou ao tomar conhecimento dos primeiros acordes e versos melodianos.


		Como Luiz Melodia se transformou em trovador urbano da sociedade contemporânea
Luiz Melodia em capa de disco póstumo. Foto: Divulgação


Tropicália

Logo depois, Melodia chegou até a diva Gal Costa. Na versão da tropicalista, “Pérola Negra” se abrilhanta com guitarra de Lanny Gordin, numa acentuação mais Janis Joplin do que aquela gravada por Melodia, em 1973, que é blueseada e, lógico, meio BB King, meio Taj Mahal. A releitura credenciou poeta do Estácio a gravar elepê que leva nome da canção.

Antes disso, todavia, a cantora Maria Bethânia o ajudou gravando o samba-canção “Estácio, Holly Estácio”, no disco “Drama – Anjo Exterminado”, lançado em 1972. Foi sucesso certeiro. Conforme texto escrito pela ensaísta Eliete Negreiros, doutora em filosofia pela USP e ligada à vanguarda paulista, Melodia escreveu essa música para namorada da adolescência.

Unindo morro e asfalto, deixou-se fotografar por Rubens Maia na capa lendária de “Pérola Negra”. Ao centro, ladeado por feijões, está o cantor-poeta, segurando um globo terrestre dentro de uma banheira. Ótimos instrumentistas tocam na obra, como o baterista Robertinho Silva e o guitarrista Hyldon, o baixista Rubão Sabino e o pianista Antonio Perna.

Cada estilo de música tem um jeito de tocar, é verdade. Você tem que se aproveitar desses elementos. Vão te dar mais liberdade Guto Goffi, baterista

Hyldon, inclusive, reluz na faixa “Pra Aquietar”, que tem arranjo de Péricles Albuquerque. Convidados pontuais também entraram no estúdio, caso de Rildo Hora e sua gaita inconfundível em “Estácio, Holly Estácio”. Ouve-se ainda chorões do Regional do Canhoto no samba “Estácio, Eu e Você”, com o flautista Altamiro Carrilho. O guitarrista Renato Piau manda ver no rock “Farrapo Humano” e, a partir de então, se tornou parceiro de Melodia.

Fundador do Barão Vermelho, o baterista Guto Goffi destaca aspecto revolucionário do disco. “Cada estilo de música tem um jeito de tocar, é verdade. Você tem que se aproveitar desses elementos. Vão te dar mais liberdade. Robertinho Silva, meu amigo, comentou comigo outro dia: ‘poxa, me chamaram pra fazer um show em São Paulo’. Falei: ‘pô, você é quem gravou aquele disco’. Fui eu de batera”, relata o músico, feliz, ao DM.

Influência de Luiz Melodia se estende ao rock brasileiro

Roberto Frejat, então guitarrista e vocalista do Barão, foi parceiro de Melodia na balada “Na Calada da Noite”, que nomeia disco publicado pela banda carioca em 1990. A sintonia volta a se repetir no rock “Não Me Fuja Pelas Mães”, faixa que integra “Carne Crua”, de 1994. Nos anos 80, o grupo convidou poeta do morro para versão do blues “Quem Me Olha Só”, num especial da TV Globo, em 1988, no qual os Titãs participam junto com barões.

À época, Melodia reconheceu que o convite lhe deixou bastante surpreso. “Nunca imaginei que Frejat ia me pedir uma letra. Somos amigos, mas escuto pouco os discos do Barão. Na verdade, ouvi apenas ‘Na Calada da Noite’”, confessou ao jornal “O Globo”, em dezembro de 1991. O guitarrista, por sua vez, afirmou que a musicalidade do compositor origina-se numa mistura entre blues, jazz e samba-canção, que se revela na formação do artista.

Observador atento do violão paterno, Luiz Carlos dos Santos respirava música desde pequeno. Nascido em 7 de janeiro de 1951, o pai, Oswaldo Melodia, tocava na boêmia do Estácio — berço do lendário Ismael Silva. Imaginava, no entanto, destino para o filho diferente que o seu: queria vê-lo “doutor”, longe da noite e, se possível, afastado da esbórnia.

Para o filho Melodia, a escola servia apenas para lhe abrir a cabeça, e só. Tanto que estudou até a sexta série. Jazzificou a percepção: curtia o trompete de Louis Armstrong e, claro, o rock’n’roll de Elvis Presley O autodidatismo era consequência óbvia, uma vez que, como o poète maudit Charles Baudelaire, se interessava por embriagar-se de vinho, virtude e poesia.

Não bastasse a beleza de seus versos urbanos, Melodia tinha voz de timbre aveludado, com vibrato perolado que encantara o Brasil e seguira lotando teatros até instantes finais de sua vida. Três discos são suficientes para lhe inserir dentre maiores nomes de nossa música: “Pérola Negra”, de 1973, “Maravilhas Contemporâneas”, 1976, e “Mico de Circo”, 1978.

Do rock ao samba-choro, “Maravilhas Contemporâneas” tem lírica de sabor baudelairiano. A canção “Juventude Transviada” obteve aceitação popular pela novela “Pecado Capital”, exibida na TV Globo entre 1975 e 1976, com seus versos soltos e despreocupados se são ou não são lógicos. Talvez o grande momento do elepê, em termos discursivos, seja “Congênito”, em que o eu-lírico toma a palavra para criticar a sociedade de consumo.

Dude São Thiago, o artista que regravou “Magrelinha”, vê a alcunha “maldito” favorável a Luiz Melodia. “Os grandes poetas são sempre malditos aos olhos do status quo, sempre em risco de serem expulsos da cidade. O papel social do conservadorismo é manter tudo como ‘sempre foi’, se é que isso existe. Enquanto a poesia vem para abrir brechas e provocar transformações”, filosofa Dude, que conheceu a obra melodiana na adolescência.

Se parte da crítica acha estranho o fato de Melodia ter nascido no Estácio e não ser sambista, lá foi ele: abre “Mico de Circo” com releitura de canção de Zé Ketti, a belíssima “A Voz do Morro”. O elepê possui ainda mais canções excelentes, caso de “Giros de Sonho” e “Falando de Pobreza”, colorindo nossa música com seus tons perolados, com seus ritmos afros e com sua poesia de quem se transviou rezando pelo Estácio sem aceitar o jogo chato da indústria.

Janaina Lobo, doutora em antropologia, e Lucas Souza, doutor em sociologia, dizem que Melodia “penou” ao escolher postura avessa ao mercado. “Fez questão de negar inúmeras vezes uma filiação com qualquer corrente musical, muito embora tivesse, sim, um trânsito próximo com esses artistas mais consagrados”, pinçam os autores, num estudo científico. Luiz Melodia — veja que privilégio — é brasileiro, como eu e você. Vou ali trocar o disco.


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Capa do disco "Pérola Negra' foi fotografada por Rubens Maia. Foto: Divulgação


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