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Música/ resenha

Bebel Gilberto cria disco afetivo com músicas do pai, João

Cantora faz álbum em que persegue aquilo que João Gilberto mais levava a sério: a perfeição. Trata-se de obra a ser ouvida - atentamente

Bebel Gilberto reedita parceria com o pianista norte-americano Thomas Bartlett: primazia e beleza - Foto: Vicente de Paulo/ Divulgação Bebel Gilberto reedita parceria com o pianista norte-americano Thomas Bartlett: primazia e beleza - Foto: Vicente de Paulo/ Divulgação

Bebel Gilberto criou um disco afetivo. Olha que não é fácil fazer obra dessa natureza. Simplesmente porque Bebel canta músicas de João Gilberto, brilhante violonista, rei do minimalismo harmônico e autor das músicas que a artista interpreta em “João”, já disponível nas plataformas de streaming. É como se Bebel tivesse escrito uma carta de amor.

Seu pai era perfeccionista. A cada nota, Bebel se sentia preterida, entristecia-se. Mas respeitava aquele que nos ensinou como se faz para unir harmonia e leveza. Tinha conhecimento enciclopédico sobre a bossa nova, o passado da música brasileira, do samba que modernizou num balanço sincopado - Ruy Castro diz, em “Chega de Saudade”, que a bossa nova jamais existiria sem João Gilberto. Concordamos, ora. Melhor, endossamos.

Bom, isso eu, você e a torcida do Botafogo já fazemos. Ou deveríamos, ao menos. De modo que “João”, o disco, serviu como instrumento para que Bebel canalizasse seus traumas. O álbum é desprovido de vícios e, inspirado de “Adeus, América” a “Você e Eu”, que é do início do fim, proporciona festança aos ouvidos. Coisa de mestre. E se você disser que eu desafino, amor, saiba que isso provoca imensa dor. Só privilegiados têm ouvido igual ao seu.

Para dar corpo a “João”, Bebel reeditou a parceria com o pianista norte-americano Thomas Bartlett, o mesmo com quem ela já tinha trabalhado em “Agora”, disco que não foi bem recebido pela crítica e público. Mas no novo trabalho, ao contrário do recém-mencionado, o que se ouve, com primazia e beleza, é a sonoridade orgânica gravada no estúdio Reservoir Studios, em Nova Iorque, nos Estados Unidos - cidade na qual João conheceu Stan Getz.

Os dois conseguiram equilibrar a equação harmonia e leveza. Adicionaram ainda o canto terno de Bebel, os dedilhados comoventes no violão de Guilherme Monteiro. Minimalista, ensinou João. Delicado, simplifico eu. Ah, vamos lá, parte considerável de tamanha delicadeza musical fica sob a responsabilidade dos percussionistas Chico Brown, Kenny Wollesen e Magrus Borges. E a cereja depositada dessa confeitaria é creditada a Bartlett, seja pelo talento na voz ou no piano, cujo instrumento (dele) já temperou o som de Noah Jones.

Arrepiante, pra dizer o mínimo. Composição assinada por Geraldo Jacques e Haroldo Barbosa em 1948, “Adeus, América” causa espanto pela perfeição imprimida na condução harmônica, na levada dançante e no vocal delicado. Fica a sensação de que, se estivesse entre nós, João seria capaz de avalizar o disco. “Eu da Bahia”, de Gil, vai pelo mesmo caminho: atmosfera sedutora, ritmo sensual, excitantérrimo. Um molejo da brasilidade numa voz aveludada pelo timbre mais joãogilbertiniano possível Tem mais aí, tem mais - acalme-se.

Bebel gravou “Caminhos Cruzados”, escrito por Antonio Carlos Jobim, mais conhecido como Tom Jobim, sob letra de Newton Mendonça. Aqui, a velha receita da lamúria prevalece: “quando um coração que está cansado de sofrer/ encontra um coração também cansado de sofrer/ é tempo de se pensar/ que o amor pode de repente chegar/ quando existe alguém que tem saudade de alguém”. Só que uma das mais belas do álbum não é essa, bem que poderia, mas “Desafinados” passa à frente. O clássico composto por Tom e Newton em 59 mostra que Bebel Gilberto é uma grande cantora. Em ambas, além de tudo, ela canta pro pai.

Ninguém lhe tira o mérito em “João”. Isso se revalida, por exemplo, no samba “Ela é Carioca”, um hino cuja letra foi escrita pelo poeta Vinícius de Moraes com música composta por Tom. Bebel se sente muito à vontade canção a canção, verso a verso, refrão a refrão. Intimidade de infância. Há ainda pérolas, como “É Preciso Saber Perdoar”, de Carlos Coquejo e Alcyvando Luiz, gravada em 1967. A cantora dispensa melodramas baratos e chuta pra lá sentimentalismos borocoxôs, pois não era isso que seu pai fazia, não é mesmo?

Nesse ritmo, Bebel reconstrói “Valsa (“Como São Lindos os Yoguis”) e “Undiú”, mas “O Pato”, de Jayme Silva e Neusa Teixeira, dialoga com a tuba e o trombone de Clark Gayton, num arranjo executado por Gayton e Bebel. Lembra a estrutura harmônica do clássico elepê “Getz/Gilberto”, gravado por João em 64 ao lado da lenda jazzística Stan Getz. Um dos maiores saxofonistas do século 20. “Eclipse”, bolero cubano de Ernesto Lecuona, antecede “Você e eu”, de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes. Que disco, Bebel, que disco!

João

Cantora: Bebel Gilberto

Gênero: bossa nova

Edição: Recordings

Faixas: 11

Disponível nas plataformas de streaming

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