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A poética de um desastre esquecido e a resistência

'Dractividade revisita o acidente com o Césio-137 em Goiânia, explorando a conexão simbólica com desastres nucleares e a marginalização da comunidade LGBTQIAPN+

Dractividade Dractividade

Neste mês o Brasil lembra os 37 anos do acidente radiológico com o Césio-137, em Goiânia, ocorrido em 13 de setembro de 1987. O espetáculo “Dractividade” será exibido amanhã, 17, às 19h30, no Centro Cultural Martim Cererê e revisita essa tragédia com teatro, dança e música, abordando conscientização, inclusão social e preservação histórica, conectando-a a outras tragédias nucleares e trazendo à tona questões de memória, invisibilidade e resistência.

Mais do que uma peça sobre um desastre, é reflexão poética e crítica que traça paralelo entre a tragédia do Césio-137 e as lutas contemporâneas da comunidade LGBTQIAPN+. Através da figura de uma drag queen radioativa, o espetáculo aborda a resistência, a vulnerabilidade e a desumanização enfrentada por grupos marginalizados, usando uma fusão de teatro, dança e música pop para criar uma experiência única e impactante.


		A poética de um desastre esquecido e a resistência
Dractividade. — Foto Divulgação: André Miranda


A criação do espetáculo começou em 2019, quando Eddy Avlis, dramaturgo e ator, decidiu explorar o acidente com o Césio-137. Em entrevista ao Diário da Manhã, ele explica que a ideia surgiu da sua vontade de conectar a tragédia a elementos da cultura pop.

Quando comecei a pesquisar sobre o Césio-137, o que mais me chamou a atenção foi a inocência das pessoas envolvidas. Ninguém sabia do perigo daquele pó brilhante. A criança que brincava com as pedrinhas não tinha a menor ideia do risco. Eddy Avlis

Avlis enfatiza que a relação com o brilho foi um ponto de partida crucial para o espetáculo. “O brilho, tão sedutor e mortal no caso do Césio, ecoa na cultura pop, que eu consumo desde pequeno. Essa dualidade — algo fascinante e inocente, mas que esconde perigos profundos — é refletida no final do espetáculo. É lindo de ver, mas carrega um peso forte.”

Símbolo de resistência e vulnerabilidade

A drag queen radioativa é o coração de “Dractividade”. Essa personagem, diz Avlis, é carregada de camadas simbólicas. “Eu quis trazer a questão da descoberta do corpo e dos desejos que nós, pessoas LGBTQIAPN+, experimentamos durante a adolescência e juventude”, explica. “A vulnerabilidade dessa fase é intensa. Sentimentos desorganizados e a sociedade muitas vezes se aproveita disso para criticar e marginalizar.”

Avlis se inspira fortemente em Lady Gaga ao criar a drag queen radioativa. “Quando vi as roupas que usaram para limpar a área contaminada pelo Césio, imediatamente lembrei de uma roupa que Lady Gaga usou na turnê ‘Born This Way’, em 2012. Era surreal e performática, protegendo o corpo inteiro, mas ao mesmo tempo, estranha e poderosa.”


		A poética de um desastre esquecido e a resistência
Dractividade. — Foto Divulgação: André Miranda


A drag queen radioativa não é apenas figura visualmente impactante, mas também símbolo de resistência e ressignificação. “Ela usa sua aparência extravagante como uma armadura e uma forma de expressar sua identidade e história. É uma metáfora da luta pela dignidade, tanto das vítimas do Césio quanto da comunidade LGBTQIAPN+.”

Acidente

Em 13 de setembro de 1987, Goiânia sofreu um grave acidente radiológico com o Césio-137, quando um aparelho de radioterapia abandonado foi desmontado por catadores de sucata, resultando em contaminação massiva. Aproximadamente 320 foram consideradas como vítimas oficiais afetadas diretamente e recebem cerca de R$ 954 pagos pelo governo de Goiás. Quatro mortes diretas e dezenas com sérios problemas de saúde.

Embora de acordo com informações da Avicésio, mais de 6 mil pessoas foram contaminadas. A tragédia ainda deixou como herança mais de 20 toneladas de lixo radioativo, e a cidade enfrentou uma crise de saúde pública e ambiental significativa.

Leide das Neves, vítima símbolo do Césio-137

Leide das Neves, vítima símbolo do Césio-137

Leide das Neves, vítima símbolo do Césio-137 Cápsula do Césio-137 deixada no pátio da antiga sede da Vigilância Sanitária em Goiânia Imagem do ferro velho interditado pela CNEN Material contaminado sendo retirado do ferro velho Piso de um bar contaminado Retirada do solo contaminado com Césio-137 Enterro de uma das vítimas em caixões de chumbo Local provisório dos tambores contendo matérial radiotivo O local onde os resíduos radioativos do acidente em Goiânia foram depositados

Décadas depois, as vítimas ainda lidam com graves sequelas físicas e psicológicas, como câncer e dificuldades financeiras. A falta de suporte contínuo e adequado tem agravado a situação, deixando muitos em condições precárias e sem assistência médica adequada. O poder público, que inicialmente ofereceu ajuda emergencial, falhou em manter o suporte necessário, e as vítimas dependem de esforços isolados e ONGs.

Essa situação reflete uma falha sistêmica na gestão de desastres a longo prazo. Apesar das leis e programas existentes, a burocracia e a falta de recursos resultam em uma resposta governamental ineficaz, exacerbando o sofrimento das vítimas e evidenciando uma injustiça social persistente.

No cerne de “Dractividade” está a crítica à invisibilidade e à marginalização das vítimas do Césio-137 e da comunidade LGBTQIAPN+. “As vítimas do acidente foram protegidas em um momento, mas hoje são esquecidas, carregando cicatrizes físicas e emocionais que a sociedade ignora”, afirma Avlis. “Vejo um paralelo claro com a experiência da comunidade LGBTQIAPN+. Dentro da nossa própria comunidade, há diversidade e discriminação. A forma como alguém se expressa, se veste ou fala pode levar a julgamentos e marginalização.”


		A poética de um desastre esquecido e a resistência
Dractividade. — Foto Divulgação: André Miranda


Avlis também destacou a importância de chamar a atenção para essas questões. “Eu queria fazer uma crítica a esse comportamento. Se você não vai ajudar, pelo menos não critique. Muitas pessoas na fase de descoberta enfrentam rejeição, são expulsas de casa ou tratadas com desdém.”

Dirigido por Ronei Vieira, o espetáculo é uma fusão de teatro físico, dança e música pop que cria uma experiência sensorial e crítica. Em entrevista, Vieira falou sobre o desafio de entrelaçar essas temáticas complexas.

A ideia inicial surgiu de uma provocação sobre o que a arte pode comunicar. Eddy trouxe o desejo de abordar tanto a tragédia do Césio-137 quanto elementos da cultura pop e LGBTQIAPN+. O principal desafio foi representar essa conexão de forma poética, sem ser didático. Queríamos que o público pudesse fazer suas próprias leituras. Ronei Vieira

Vieira refletiu sobre o paralelo entre a desumanização das vítimas do Césio e a marginalização da comunidade LGBTQIAPN+. “As vítimas do Césio eram vistas como 'lixo radioativo', algo a ser evitado e excluído. Da mesma forma, a comunidade LGBTQIAPN+ enfrenta preconceito e violência. O aumento de ataques durante o governo Bolsonaro evidenciou uma autorização velada para ofender e discriminar.”


		A poética de um desastre esquecido e a resistência
Dractividade. — Foto Divulgação: André Miranda


A escolha de uma drag queen radioativa como personagem central é uma expressão da resistência e da força das performances drag. “A drag queen é uma forma de resistência. A dança e a performance são maneiras de continuar existindo e buscando dignidade”, disse Vieira. “A estética surreal e performática da drag é uma metáfora potente. A resistência, tanto das vítimas do Césio quanto da comunidade LGBTQIAPN+, é a sobrevivência em meio à desumanização.”

Reflexão

“Dractividade” busca ir além do entretenimento, proporcionando um espaço de reflexão sobre marginalização, preconceito e resistência. Vieira destacou a importância de sensibilizar o público sobre essas questões. “A peça não é apenas um lembrete de uma tragédia, mas uma forma de conectar o público às narrativas de marginalização que ainda persistem.”


		A poética de um desastre esquecido e a resistência
Dractividade. — Foto Divulgação: André Miranda


O espetáculo combina elementos de teatro, dança e música pop para criar uma experiência que é tanto esteticamente rica quanto emocionalmente provocativa. “O teatro é uma arte íntima e presencial. A dança e a música criam uma conexão com o cotidiano das pessoas, enquanto a proximidade física dos atores no palco gera um incômodo necessário para que o público sinta o peso da história”, afirmou Vieira.

A peça é um convite à reflexão sobre o passado e o presente. O acidente com o Césio-137 deixou cicatrizes em Goiânia e suas vítimas ainda lutam por reconhecimento e dignidade. A comunidade LGBTQIAPN+, por sua vez, enfrenta desafios contínuos em um país que frequentemente lidera tristes estatísticas de violência contra essa população.


		A poética de um desastre esquecido e a resistência
Dractividade. — Foto Divulgação: André Miranda


Ronei Vieira reforça a importância de manter viva a memória dessas tragédias. “Seja pelas vítimas do Césio ou pela luta LGBTQIAPN+, a maior resistência é continuar existindo, dançando, sobrevivendo e buscando dignidade.” Dractividade convida o público a refletir e sentir essa resistência, oferecendo uma poderosa metáfora para a luta pela dignidade e a importância de lembrar e respeitar o passado.

O espetáculo “Dractividade” conta com Eddy Avlis na atuação e dramaturgia, Ronei Vieira na direção artística e produção, e Warla Paiva na direção de movimento. O figurino é criado por Fernanda Alinny, as máscaras são desenvolvidas por Daniela Gomes, e as fotografias de divulgação são feitas por André Miranda.

O espetáculo representa uma oportunidade única de revisitar uma tragédia nacional sob uma ótica artística contemporânea, questionando a forma como tratamos nossas memórias e os grupos marginalizados na sociedade.

Serviço:

Data: 17 de setembro de 2024

Horário: 19:30h

Local: Centro Cultural Martim Cererê, Goiânia

Entrada: 1 kg de alimento não perecível

Ingressos: Disponíveis gratuitamente pelo Sympla

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