O mundo como vemos hoje não é o mesmo de 15 anos atrás, basta perceber ao redor a quantidade de pessoas conectadas ao celular, e que esta é a nova realidade. A internet se expandiu e tornou-se um estilo de vida, já não é mais uma ferramenta, e sim uma necessidade.
Redes sociais como Instagram e TikTok já ultrapassaram o status de apenas "socializarem" e se tornaram uma profissão para muitos. O grande problema é a quantidade de horas passadas em frente às telas e o vício que isso pode causar.
Para se ter uma ideia, somente em 2022, houve mais de 670 milhões de downloads do TikTok. Segundo um levantamento do DataReportal, no Brasil, foram mais de 80 milhões.
O celular substituiu o computador, e agora está mais fácil acessar praticamente tudo em tempo real. A antropóloga Camilla Nascimento comenta sobre a qualidade das relações interpessoais e sociais no atual contexto.
"Primeiramente é importante considerar o que teóricos da Antropologia como, Daniel Miller e Heather Horst falam sobre essa ambivalência que construímos entre o virtual e o analógico, segundo eles “o digital, assim como toda a cultura material, é mais do que um substrato; está constituindo-se como parte do que nos faz humanos” (2015)", afirma.
"O que significa dizer que, o uso do digital é parte de quem somos e de como nos relacionamos na atualidade. Então, todos nós estamos imersos nesse uso “excessivo”, então a pergunta melhor a ser feita é como estamos nos relacionando? Que sociedade cada um de nós está construindo com os recursos que têm?", Camilla Nscimento, antropóloga e docente em Ciências Sociais
A antropóloga afirma ainda que, ao se falar em saúde mental é necessário considerar as várias questões que a envolvem, desde o atendimento das necessidades básicas humanas de alimentação, sono, segurança e lazer.
Ela cita uma pesquisa feita pela TIC Domicílios, de 2023, 58% têm no celular sua única forma de acesso à internet, enquanto 42% usam também computador. Então, a dependência do celular é maior entre usuários de camadas mais baixas, em especial, classes D e E (87% nas redes através do celular).
"Tendo isso em vista, é possível considerar a ausência de outras formas de acesso à lazer, cultura e informação como maior fator responsável por uma possível diminuição da saúde mental. O que considero ser uma questão que deve ser encarada como problema coletivo, e a respeito do qual os órgãos públicos precisam ser cobrados, haja vista que as camadas mais pobres das cidades precisam desse investimento por parte do poder público", afirma.
O antropólogo canadense, Erving Goffman, disse que “na antropologia não existe algo como puro imediatismo humano; interagir face a face é tão culturalmente infligido quanto comunicações digitalmente mediadas, (…) nós falhamos em ver a natureza estruturada da interação face a face porque essas estruturas funcionam de maneira tão eficaz”.
Camilla cita que "o uso dos celulares é mais uma transformação nas nossas relações sociais, assim como outras novidades. Por exemplo, o filósofo grego Sócrates viu com pavor o advento da escrita, considerada por ele uma forma artificial e arriscada de externalizar algo próprio à mente humana, que iria danificar permanentemente a capacidade de construção e armazenamento de memórias".
O mesmo acontece atualmente, devido ao comportamento social em constante mudança.
O que ocorre com o advento da internet e do uso dos celulares é que existe uma construção da identidade pessoal a partir do uso que cada um faz de seu aparelho, tanto construindo sua rede de relações sociais quanto fazendo suas próprias escolhas de informações, cultura, preferências estéticas que dependem cada vez menos do seu núcleo familiar ou localização geográfica Camilla Nascimento
De acordo com um levantamento feito pelo Comscore, o Brasil ocupa o terceiro lugar em tempo de conexão na internet. Além disso, conforme dados os brasileiros são também a segunda população mais ativa nas redes sociais no mundo, e a terceira maior no Facebook.
"O falecido Orkut, criado em 2004, se tornou uma febre entre brasileiros, mas, com a mesma rapidez com que foi incorporado, foi abandonado após a migração em massa de usuários para o Facebook. Então o que podemos saber sobre nós, brasileiros, é que os dados sobre nossa grande conexão nas redes mostra que estamos todos afetados por muitas relações sociais estabelecidas digitalmente", completa.
A linha tênue entre o uso do celular e o vício
A dependência do dispositivo celular já não é um assunto novo, e tem sido debate desde o advento das redes sociais.
A psicóloga Larissa Geovana de Paiva Batista afirma que "em termos de adoecimento psicológico deve-se considerar o prejuízo que determinado comportamento causa à vida pessoal e a produtividade do indivíduo".
Ela ressalta que ainda não existem critérios específicos para um diagnóstico, no entanto pesquisas recentes e a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhecem o termo nomofobia para descrever o comportamento de dependência e os sentimentos de angústia e ansiedade que algumas pessoas demonstram quando não têm o celular por perto.
Além disso, o uso excessivo do celular pode resultar em quedas de produtividade, seja no ambiente escolar ou no trabalho. A psicóloga alerta que este comportamento já não é mais uma questão de problema individual, mas sim coletiva.
Quando falamos em dependência ou vício de redes sociais estamos tratando de um tema ainda pouco discutido pelas esferas do poder público, diante do cenário que estamos vivendo dentro de casa ou nas escolas, é nítido que essa questão deixou de ser um problema individual ou das famílias e tornou-se uma questão coletiva, de saúde pública Larissa Geovana de Paiva Batista, psicóloga clínica e professora universitária
A vida pessoal se atrela à profissional nas redes sociais e, com isso, há uma fusão de ambas que são publicadas nas redes como formas de mostrar o cotidiano, os detalhes, sem passar pelo filtro da privacidade.
"Se olhamos para a questão do trabalho o cenário não se torna melhor, visto que existe na redes sociais uma lógica da produtividade que engole as pessoas. Os perfis profissionais são um exemplo disso, não basta que você trabalhe é preciso que cumpra o expediente virtual compartilhando fotos e vídeos do seu sucesso constante", explica a psicóloga.
Celular rouba protaginismo, mas há retorno
Larissa abre uma reflexão para que haja uma "desintoxicação" e uma mudança de comportamento.
"A reflexão a respeito de qual relação eu, enquanto usuário, estabeleço com com a tecnologia é indispensável para a mudança. Não diz respeito somente a quantidade de horas dedicadas ao celular mas também à importância deste aparelho na nossa vida", inicia.
"O celular está roubando o protagonismo daquilo que realmente importa: a vida real e sua riqueza de possibilidades e experiências. Precisamos nos questionar o que realmente nos importa, e quais são as coisas que nos enriquecem subjetivamente, a partir disso podemos concluir que as redes sociais podem ter espaço na nossa vida desde que não se tornem os vilãs e destruam as relações que realmente importam e nos constituem como indivíduos. Levar uma vida mais analógica é levar uma vida mais criativa e leve, explorando nossas individualidades e valorizando o que eu realmente sou e não aquilo com o quê me comparo", finaliza.