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Como criar meninos sob a ótica da igualdade de gênero

Em uma propaganda do Marlboro, dos anos 1970, um caubói se mistura, em transparência, à de um cavalo ao som da narração.

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Em uma propaganda do Marlboro, dos anos 1970, um caubói se mistura, em transparência, à de um cavalo ao som da narração: "Não se vê mais garanhões indomáveis por aí". O homem acende um cigarro e observa o animal galopando na paisagem. Essa figura, considerada a epítome da masculinidade, fez parte dos anúncios da marca dos anos 1950 até o fim dos anos 1990. O recado era claro: o homem durão é visto como espécie em extinção, mas continua a ser o modelo do que é ser homem.

O cenário, hoje, não é tão distinto em termos de representação da masculinidade. Influenciadores se sentem à vontade para propagar na internet que são misóginos e masculinistas. Eles defendem a superioridade dos homens sobre as mulheres e compartilham táticas para seduzi-las e enganá-las. Um dos nomes fortes desse movimento é Andrew Tate, um ex-lutador, hoje autointitulado influenciador misógino.

Tate é citado na minissérie "Adolescência", da Netflix, que foi a faísca para que debates sobre masculinidade e infância borbulhassem nas redes sociais e entre pais e educadores. A produção britânica conta a história de um menino de 13 anos que mata uma colega de escola. O crime é envolto em bullying, desejo de vingança e ódio às mulheres.

A série também levantou o debate sobre como pais devem criar seus filhos homens para que não cresçam machistas, sejam gentis e defendas ideais de igualdade.

A Folha de S.Paulo conversou com especialistas para entender como os adolescentes pensam e por quais caminhos os responsáveis podem seguir na educação.

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MENINOS QUEREM VALIDAÇÃO SOCIAL

Segundo Luciano Ramos, embaixador da campanha "Homens Positivamente", da Unesco, os adolescentes costumam classificar as meninas segundo estereótipos que parecem obra de homens de 70 anos.

As que usam roupas curtas e se relacionam mais livremente são vistas como promíscuas e, consequentemente, inaptas para um relacionamento sério e duradouro. Esse tipo de investimento amoroso fica reservado às mais quietinhas e intelectualizadas. É um discurso comum entre os tais coaches e influencers de masculinidade.

Reis afirma que esse vocabulário machista se constrói em muitas frentes —são os maus exemplos de masculinidade dentro de casa, o acesso a vídeos curtos de grupos masculinistas nas redes sociais e a pornografia.

Nana Queiroz, autora de "Os Meninos São a Cura do Machismo", menciona estudos que sugerem que os pais influenciam cerca de 20% do comportamento dos filhos.

No fim, o que os meninos querem é validação social. "A gente passa a vida inteira tentando ser reconhecido como homem na comunidade em que faz parte", diz Reis. "Desde [a ideia] que não pode chorar, de precisar ser forte o tempo todo, de que se uma menina dá abertura, tem que dizer sim porque, se disser não, você não é um homem de verdade."

A igualdade de gênero passa longe desse manual de instruções do que é ser homem, pautado pela violência como atestado de macheza, e os meninos se tornam vítimas desse ideal. "É muito cruel com o próprio adolescente se a gente pensar nesses meninos de 12 a 14 anos. Eles estão atrás de uma masculinidade inalcançável, baseada no machismo e no poder e que se manifesta pela violência", diz Ramos. "Ser reconhecido como homem é ter poder e se reconhecer como homem é ser violento."

CONVERSAR SEM JULGAR

Para Queiroz, o crescimento de movimentos como os incels —neologismo para celibatários involuntários que sofrem com a rejeição romântica— e red pills —movimento que defende a superioridade masculina— reflete um fracasso social coletivo.

"A grande armadilha do red pill é vender um passado brilhante em que os homens eram livres, poderosos, seguros e amados", diz Queiroz. "Esse passado nunca existiu."

A autora defende que algumas expressões do movimento feminista adotavam posturas de exclusão dos homens do debate e que isso acabou prejudicando o processo.

"A sociedade falou muito para os meninos o que eles não poderiam ser", diz Queiroz. Faltou, na visão da escritora, mais orientação de bons exemplos do que eles deveriam almejar ser. "Eles estão desorientados, sozinhos e com medo de fazer perguntas."

É importante criar um ambiente em que os meninos se sintam seguros para conversar. Queiroz diz que esse tipo de abertura precisa existir com os pais, educadores e pessoas mais velhas, "sem julgamento". "Eles precisam de espaço para verbalizar as coisas erradas que eles pensam."

Ela afirma que são conversas que podem começar a partir de algum constrangimento, mas que terminam em tom de alívio. "A ideia não é causar vergonha por um comportamento, mas oferecer boas opções para lidar com aquilo."

Para Belinda Mandelbaum, psicanalista e professora titular no Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo), escutar o que os meninos têm a dizer é fundamental, mas conversas sobre masculinidade podem começar sem que eles levem a questão aos pais. "Estamos rodeados de estímulos que podem ser disparadores dessa conversa", diz, citando notícias de violência de gênero, novelas e outras produções, como conteúdo em redes sociais.

FALAR SOBRE MASCULINIDADES NO PLURAL

Oferecer bons modelos de masculinidade também ajuda. Ramos afirma que é necessário trabalhar com os meninos, desde a primeira infância, a ideia de masculinidades, no plural, positivas. Longe de ser uma aula sobre o que é igualdade de gênero, o embaixador da campanha "Homens Positivamente" propõe ações como a contação de histórias para os pequenos debaterem o que é ser menino e brincadeiras com bonecas para que eles estejam em contato com as habilidades de cuidados.

Alguns pais torcem o nariz, ele diz, mas a ideia é criar futuros homens funcionais. "Se ele cresce naturalizando o cuidar da casa, cozinhar, lavar a louça, a gente está falando para o menino que cuidar não tem gênero. É de todo mundo."

Aos garotos mais velhos, ele indica debates sobre relações afetivas e consentimento, mas também dedicação à saúde. O tema é sensível –não faltam casos de homens que precisam de insistência das parceiras para visitar médicos de rotina.

Para Mandelbaum, é importante ajudar as crianças a entender que modelos vendidos em redes sociais podem não ser realistas. "A criança fica exposta a modelos muitas vezes idealizados, que não são reais e se distanciam do cotidiano", diz. Ela afirma que é nocivo que os pequenos não vejam a dimensão humana dessas figuras.

Importante também, segundo a psicanalista, é que o bom exemplo venha de casa por meio de ações, não só de discursos. Ela diz que não adianta uma família promover palavras de igualdade se o pai não ajuda nas tarefas domésticas.

Permitir que as crianças desenvolvam sua própria individualidade deve ser o objetivo. Queiroz afirma que a ideia não é "criar o super-homem progressistão", outro modelo que acabaria alimentando frustração. "Você tem que apresentar uma gama de masculinidades possíveis."

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